sábado, 26 de novembro de 2022

As histórias contadas por meu pai embalaram uma vida toda

Em setembro de 2021, na primeira consulta com a Dra. Flávia de Castro Vellasco, no Hospital das Clínicas de Goiânia, decidimos encaminhar a documentação para pleitear uma vaga na lista de transplante pulmonar da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. O pedido, enviado pela assistência social do HC/UFG, andou muito rápido à Central de Transplantes e logo fomos chamados para a primeira consulta na capital gaúcha, realizada em 03 de dezembro subsequente.
Nesse interim, minha esposa Iara, que na prática é quem coordena o tratamento e providencia os encaminhamentos mais importantes, procurou conhecer melhor os trâmites, pessoas que estavam em lista e transplantados, e mesmo os profissionais de saúde envolvidos. Entre estes, o pneumologista e cirurgião torácico J.J. Camargo (já escrevi sobre ele antes), uma lenda viva em Porto Alegre. Sua fama o precede e não seria por menos: a Santa Casa se tornou uma das grandes referências no país em transplantes de diversas naturezas especialmente por causa da equipe vem coordenando.
Camargo, fora do centro cirúrgico, e um ótimo contador de histórias e ‘causos’ (como dizem os goianos), com uma fala agradável, pausada, que abrilhanta lives, podcasts, conferências, mesas redondas, além de abrilhantar semanalmente as páginas do jornal Zero Hora e encadernações de diversos livros de crônicas que publicou, alguns se tornando best-sellers. Pudemos conhecer os dois lados do médico e professor. E nos encantamos (minha mãe então nem se fala).
Do outro lado, vivendo em uma chácara no município de Pires do Rio, meu pai João Bosco possui um currículo escolar bem mais modesto que o Camargo, mas isso não o desmerece em sua trajetória pessoal de agricultor, líder comunitário, cooperativista e sindical. Mas pretendo falar desse homem fascinante por um viés pessoal (de filho), que ao lado pude viver alguns dos melhores momentos de minha vida, alguns em meio à dor e ao medo.
Para a maioria das pessoas, talvez isso seja irrelevante, mas chama a atenção o quanto meu pai e seus irmãos tem um dom para ouviu uma história e reconta-la dezenas de vezes de forma fidedigna. Parece que essa característica que foi herdada de minha avó paterna Catarina, que herdou de sua mãe Luzia.
Certa vez meu pai contou sobre um episódio conhecido em Orizona: a briga entre a família Veloso e os ciganos, que ouviu de sua avó Luzia há mais de trinta anos (nossa família era próxima dos Veloso). O relato trágico é incrivelmente parecido com o que aparece no livro Nomes de Nossa Terra, do professor Olímpio Pereira Neto, mas certamente não lera aquela publicação para repeti-la.
Em minha infância e adolescência na região da Firmeza, o trabalho começou muito cedo, por volta de meus cinco anos de idade. Lembro que no início tinha dificuldades até de erguer a ferramenta, mas o trabalho era necessário. Apesar da preguiça comum a infância e juventude, meu pai criava artifícios para que me concentrasse e motivasse no serviço. Uma vez, roçando uma capoeira na terra de meu avô paterno, estava cortando muito alto com a foice. Para me repreender disse:
- Se você não cortar o mato mais baixo, vai espetar os aviões que costumam passar voando por aqui.
Ao longo dos anos, uma diversidade de tarefas (capina, roçagem da pastagem, plantio e até a colheita dos grãos, manejo do gado e porcos, viagens de trabalho e passeios a cavalo muitas outras) se tornaram agradáveis por sua presença e pela conversa diária, contações de histórias de episódios que aconteceram com familiares e pessoas conhecidas do presente e do passado. São contos do dia a dia que encheriam muitos livros, caso fossem escritas. E ele abrilhanta as suas histórias com imitação dos personagens reais e de um toque de humor. Também é um ótimo contador de piadas. Quantas vezes o ouvi contando sobre Zé Vicente, João Vicente, seu Jovando, Dito Pedro, Joaquim Gregório, o bisavô Manoel, tio Miguel Sousa, tio Venerando, vó Carola, vô Jesus, a trisavó Jovita, e muitos outros.
Depois de minha juventude e início da vida adulta, que fui ‘cuidar de minha vida’, afastamos um pouco. As antigas atividades juntos retomaram depois que papai e principalmente eu fomos cuidar da saúde e um pode contar com o outro durante o tratamento (principalmente eu pude contar com ele). Juntos por horas, colocamos o papo em dia. Tento também contar minhas histórias, mas não são verdadeiras e confiáveis como as suas, pois tenho uma memória que me trai.
Recentemente, o escritor Fabrício Carpinejar disse em seu livro Cuide dos pais antes que seja tarde que “Todo filho é pai da morte de seus pais”. Seu pai, o imortal gaúcho Carlos Nejar disse em seu Crônicas de um imortal ou (in)vento para não chorar que a nossa morte não pertence a terceiros, nem aos filhos, já que ninguém poderá vivenciá-la em nosso lugar ou ao nosso lado. Contudo, a velhice poderá ser compartilhada com nossos entes. E se espera que isso aconteça.
Meu pai (e minha mãe) estão, por necessidade e por necessidade, prolongando os seus deveres para comigo e isso dobra a minha responsabilidade para com eles em suas velhices ou situações de doença. E isso também estende no caso de minha família que vive em Porto Alegre, uma vez que esposa e filhos também se tornam meus pais e mães.
E quero poder ouvir muitos causos de meu pai, seja numa viagem de carro, na roçagem de pasto, na capina da lavoura, no cuidado dos porcos. Quem sabe, possamos publicar um pouco dessas histórias tão interessantes e revigorantes e contribui muito para conhecer a história de nosso município de Orizona e de toda a região. E que isso seja estendido aos demais, que caminham de forma tão firme a meu lado.

ANSELMO PEREIRA DE LIMA
(E-mail: anselmopereiradelima@gmail.com)

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