quarta-feira, 30 de novembro de 2022

17 de julho de 1999: o dia que mudou as nossas vidas

O dia 17 de julho tem para mim um sentido muito especial. Primeiramente porque nasceu nesta data minha irmã Ionara Rosa de Lima, confidente e parceira de todas as horas. Depois, porque foi nesta data que perdi um breve e grande amigo: o Guilherme Pereira Machado. Foi em 1999, há mais de vinte e três anos.
Em 1999 foi o primeiro ano de funcionamento da Escola Família Agrícola de Orizona (EFAORI). A partir de articulações desde de 1997, lideradas por Antônio Pereira de Almeida (Baiano) e o professor João Batista Pereira de Queiroz, ambos da Comissão Pastoral da Terra, e de lideranças do Centro Social Rural de Orizona (entre essas destaco Manoel Ribeiro de Oliveira, Sebastião Fernandes de Oliveira e Francisco Pereira de Lima), resolveu-se colocar em funcionamento da escola naquele ano.
No intervalo desses dois anos, Baiano, Queiroz, as lideranças do Centro Social e educadoras como Aparecida Maria Fonseca e Luísa Maria Ribeiro Almeida fizeram um intenso trabalho de base por todo o município de Orizona, a fim de mobilizar a comunidade.
Com a parceria da Prefeitura Municipal de Orizona foi realizado o empréstimo da Escola Municipal Rio do Peixe. O prefeito era Anteres Vieira Pereira. Esse prédio estava inacabado e com pendências. A comunidade do Rio do Peixe não ficou satisfeita com a decisão da Prefeitura. Por isso, quando chegamos, uma das preocupações foi o relacionamento daqueles que ali viviam.
Depois de um mutirão, com a participação das famílias dos matriculados na EFAORI, para fazer algumas adequações no prédio, afinal a escola funcionaria por internato. Em 1ª de março de 1999 aconteceu a assembleia de abertura e a aula inaugural, em um dia muito chuvoso.
O tamanho da primeira turma variava, mas os que se estabeleceram no início foram 23 estudantes, de várias regiões de Orizona e Luziânia. Éramos uma turma rebelde, questionadora, tentando descobrir as possibilidades, mas muito comprometida com as atividades, principalmente as práticas, coordenadas pelo professor Felipe Antonio Dias (atual perfeito). A equipe de trabalho também era composta no primeiro ano por Francisco Pereira de Lima (Chiquinho), dona Maria do Dão (teve também a dona Rita), João Batista Queiroz (que assessorava a equipe pedagógica), Aparecida Fonseca, Luisa Ribeiro Almeida, Lúcia Claret Pereira e Antônio Baiano.
Ao final do primeiro semestre, aconteceu assembleia com as famílias, algo que acontece ainda hoje. Nessa altura, a turma tinha superado a maioria das diferenças e éramos um grupo bastante unido. O Guilherme, ao final da assembleia e do almoço coletivo, quando se despediu de meu pai João Bosco de Lima, disse:
- Nos vemos em agosto - contudo, isso não aconteceu.
Éramos em 1999 uma turma muito animada, que ‘pegava pra valer’ nas atividades práticas e jogávamos futebol, ora na quadra de cimento, ora no campo de futebol do Rio do Peixe. Também tinham as partidas de truco com vários praticantes e as rodas de violão com o Fábio Borges.
Dormíamos todos os homens em uma sala de aula improvisada para ser dormitório. Chegamos a pernoitar 20 jovens no mesmo quarto. As meninas, que eram três, dormiam em outra sala, com a monitora da noite. Quando deitávamos as 22 horas, sempre aguardávamos chegar por volta das 23 horas acordados, quando o Guilherme sempre conversava enquanto dormia. No outro dia, inventávamos um monte de mentiras sobre o que teria dito em seu sonambulismo.
No final de junho, saímos para as primeiras férias, cada qual para a sua propriedade rural, em localidades espalhadas pelo município de Orizona e também em Luziânia. Boa parte vivia na região do Buritizinho. Guilherme era um desses. Morava com a família no Mandaguaí, município de Luziânia. Também mantinham uma propriedade rural na região do Piracanjuba, próximo a Maniratuba. Guilherme era, apesar da juventude, um homem maduro e robusto, inteligente, bom jogador de futebol, cheio de amigos e querido pelas garotas.
Na tarde do dia 17 de julho, como de costume, Guilherme e seu irmão mais novo Ernane transitavam entre as duas propriedades e próximo ao distrito de Maniratuba se chocaram frontalmente com outro veículo. Acidente frontais geralmente são terríveis.
Como de costume, naquele final de tarde eu jogava futebol no campinho da nossa comunidade na região da Firmeza, construído na propriedade do Ramos de Sousa. Por acaso, tive um mal-estar, que me deixou com as ‘pernas bambas’, a ponto de ter que me sentar, algo muito anormal para alguém de 15 anos, com a forma física e saúde em dia. Pouco tempo depois, o Chiquinho, que também era da comunidade, veio e avisou ao Máximo de Castro e a mim sobre o ocorrido. Máximo era o único colega da mesma comunidade que eu.
No outro dia fomos para o velório, na propriedade da família, na região do Mandaguaí. Era impossível pior impressão: o velório foi de uma dor terrível. Era desesperadora a situação da família, que via no caixão o corpo de um filho, sobrinho, cunhado, primo e irmão já desfalecido, e ainda tinham que se preocupar o estado gravíssimo de saúde do Ernane, que era mais ou menos da minha idade.
A comunidade EFAORI, que ainda era pequena, compareceu integralmente. Não faltou nenhum dos colegas de sala, nenhum dos funcionários. Também foram várias famílias de estudantes, associados e diretores do Centro Social e parceiros da escola. Todos estiveram juntos e choraram ao lado da família, sem que ninguém arredasse o pé.
Depois do velório e da celebração na capela de Maniratuba, o plantaram no solo, no cemitério daquele distrito. Depois teve a missa de sétimo dia e o Ernane foi se recuperando, graças a Deus. Parece que inconscientemente ou secretamente, assumimos o compromisso de continuar a caminhada pelo Guilherme.
Acredito que, apesar de todo o processo de criação da EFA, aquela segunda quinzena de julho de 1999 foi a fundação definitiva da escola (claro que digo isso simbolicamento). Em agosto, estávamos todos de volta à escola do Rio do Peixe, sentindo aquele vazio, mas motivados a continuar aquele projeto, que não sabíamos onde iria chegar. Antônio Baiano comentou algumas vezes que aquele grave acontecimento uniu a turma de tal forma que permitiu a continuidade da EFA.
No segundo ano, adquirido com recursos da entidade belga SIMFR/ DISOP e da Prefeitura de Orizona, a escola passou a funcionar em terreno próprio, nas proximidades da cidade de Orizona, na antiga chácara do Miguelão. Ali, juntamente com outra turma e novos professores (César e José Augusto) e funcionários (José Francisco, Vasco e Maria Gomes), começamos novamente quase do zero. Depois vieram outras turmas, outros monitores, outros funcionários, outras famílias.
Em 22 de dezembro de 2001, no auditório do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Orizona, colamos grau e diplomamos os mesmos vinte colegas que retornaram em agosto de 1999:
- Adair José Pereira
- Alberto Caixeta de Sousa
- Amador José Caixeta Júnior
- André Alistor de Oliveira
- Anselmo Pereira de Lima
- Ernando da Silva Pereira
- Fabiano Peres
- Fábio Borges de Oliveira
- Fábio Sebastião de Lima
- Fernando Fernandes de Oliveira
- Ivan Carlos Caixeta
- João Flávio Caixeta
- Júlio César Caixeta
- Keila Maria Lúcio
- Mariana Correia
- Máximo de Castro
- Luciano Alves Ferreira
- Osmando Ferreira de Sousa
- Samuel Matias de Araújo
- Solange Pereira.
Em 2007, quando eu era professor/ monitor na EFAORI, outro fato parecido voltou a nos abalar numa manhã de segunda-feira, o estudante Maximiliano, enquanto seguia para a sessão escolar na EFA, se chocou com um caminhão e também faleceu. Mais uma vez a escola se uniu e enfrentou mais uma tragédia envolvendo estudantes. Depois daí, outros egressos se foram por problemas de saúde e nos deixaram um vazio muito grande: Lucas, Jozélio e Fabrício.
São mais de vinte e três anos desde a morte do Guilherme, a EFA segue o seu propósito, de formar cidadãos e cidadãs técnicos e técnicas em Agropecuária pela Pedagogia da Alternância. E se prepara para receber a 25ª turma em 2023, com uma demanda cada vez maior. E faz isso de forma muito competente, para orgulho daqueles e daquelas que pela EFA passaram e deram a sua parcela de contribuição e que por outro lado, receberam muito da escola.

NOTA 1: Em 2001, foi inaugurada a praça de esportes da Escola Família Agrícola de Orizona, com a presença da família do Guilherme e realização de torneios de futebol Society. Foi descerrada uma placa, dando o nome à praça de Guilherme Pereira Machado. Por uma necessidade de gestão, posteriormente a praça de esportes teve que ser transferida para outro local da escola.

NOTA 2: Por ter um caráter muito pessoal, peço perdão desde já, caso tenha ofendido ou contrariado alguém com esse texto. Afirmo que foi com a melhor das intenções que o escrevi e com o propósito também de homenagear um amigo e também a EFAORI.

ANSELMO PEREIRA DE LIMA
(E-mail: anselmopereiradelima@gmail.com)

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