Goiás,
na Primeira República, vivia em condições periféricas de prestígio em relação
ao restante do país. Era considerado um Estado satélite, de terceira categoria,
sem muita força política. No parlamento (Câmara dos Deputados), somava apenas
quatro representantes, que geralmente não exerciam influências junto ao governo
e as bancadas.
Esta
lógica às vezes mudava momentaneamente, como foi na ascensão de José Leopoldo
de Bulhões Jardim, que chegou ao início do século XX ao primeiro escalão do
governo Rodrigues Alves, ocupando o cargo de Ministro da Fazenda. Também foi
diretor do Banco do Brasil. Graças a sua intervenção (mesmo criticado pelos
oposicionistas goianos) foi possível que a via férrea adentrasse depois de
muita espera o Estado de Goiás.
As
dificuldades se deram por causa da má gestão no processo de ampliação da rede
ferroviária e a ingerência de Minas Gerais (Estado influente no governo
federal), que atuou para impedir esse avanço. A Estrada de Ferro Goiás só
começou a operar aquém-Paranaíba em 31 de dezembro de 1914. Antes, tinha ficado
estacionada em Araguari desde 1896. Quem saia de Goiás, tinha que se deslocar
em condições precárias até a cidade mineira, para depois se dirigir aos
principais centros econômicos e políticos do país.
Dentro
do território goiano, foram mais de duas décadas para que se chegasse a
Anápolis. A E.F. Goiás teve a sua construção iniciada por concessão do governo
federal em 1906, bem na época que Leopoldo de Bulhões era ministro da Fazenda,
mas as obras só começaram de fato em Goiás em 27 de maio de 1911[1].
No governo Afonso Pena, a ferrovia foi desviada para a cidade mineira de Formiga,
um recuo propositalmente lesivo a Goiás. Em 1910, Nilo Peçanha havia determinado
a revisão do contrato. Entre caminhos e descaminhos, em 1914 cessaram os
trabalhos da construção após atingir o rio Corumbá, onde foi construída a
estação do Roncador. Além dos trilhos, em Goiás estava na ocasião pronta a
ponte sobre o rio Paranaíba e as estações de Anhanguera, Cumari, Goiandira, Verissimo,
Içá, Ipameri, Inajá, Urutaí e Roncador.
Os
relatos que apresentaremos a seguir, sobre a vinda do Ministro da Viação, José Pires
do Rio, em 24 de agosto de 1921, foram feitos pelo brilhante jornalista Moisés
Santana, em artigos daquela ocasião, publicados no jornal Lavoura e Commercio,
de Uberaba[2]. Moisés Santana nasceu na capital goiana em 07 de
fevereiro de 1879[3]. Foi um brilhante jornalista, historiador e
jurista, atuando e morando em diversas cidades de Goiás, Minas Gerais e São
Paulo. O seu hábito itinerante estava relacionado a ser um grande polemista,
que por conta de sua militância jurídica e jornalística, era muito perseguido
pelos poderosos locais. Fundou e dirigiu dezenas de jornais pelas localidades
que passou. Foi ferido a bala em 20 de maio de 1922 na redação do jornal
Lavoura e Comércio, em Uberaba, morrendo a seguir. O seu algoz foi João
Henrique Sampaio Vieira da Silva, presidente da Câmara e intendente em
exercício naquele município.
Segundo
seus relatos, de 1914 a 1921, a ferrovia ficou parada na barranca do Corumbá,
próximo a onde hoje é a cidade de Pires do Rio. A construção da ponte sobre o
rio era um imbróglio que estava impedindo o avanço do projeto. Como sempre foi na
história de nosso país, e isso era muito comum na Primeira República, a
execução de obras de infraestrutura sempre pecaram pela qualidade na elaboração
dos projetos, na gestão e no controle. Também nunca faltou um desvio de conduta
(corrupção) aqui e ali.
Depois
de muita pressão e dois anos de construção da ponte, o ministro resolveu, sobre
ordens do presidente Epitácio Pessoa, vir a Goiás inspecionar a obra. Na
ocasião, dos cinco pilares, base da construção, quatro apresentavam
encaminhados e um, estava bastante atrasado. Tudo acontecia lentamente. Por
ocasião da vinda do ministro, intencionalmente ou por descuido, o governador de
Goiás, Eugênio Jardim, não foi comunicado oficialmente da visita e não
compareceu para receber a autoridade. Para ter uma ideia do que representava essa
visita, em 197 anos desde a colonização do Estado, era apenas a segunda
autoridade do “auto escalão” governamental que viria a pisar em solo goiano.
Sem as
devidas autoridades, e não intencionalmente, coube a uma comissão nomeada pela
municipalidade de Campo Formoso (Orizona), fazer o papel diplomático e receber
o ministro e sua comitiva. Esta comissão também trouxe um ofício de saudação
que ao mesmo tempo solicitava providências com relação à obra e às demandas
goianas. O documento foi redigido por Moisés Santana, que passava uma temporada
em Campo Formoso.
O
ofício, com data de 23 de agosto de 1921, realçava com relatos históricos a importância
da ilustre visita. Também se queixava do isolamento e o atraso de Goiás:
“Goiás, senhor Ministro, não conhece até
hoje tal igualdade [igualdade de direitos]. Vive excluído da comunhão nacional,
e, como. Prometeu a nova espécie, ajoujado ao martírio de uma convivência,
assinalada pelo sociólogo patrício, Sr. Dr. S. Fleury Curado: ‘O goiano precisa
ser cem vezes goiano, para ser uma vez brasileiro’”.
Ressalta
também que “sensível às nossas
necessidades, o Exmo. Sr. Dr. Epitácio Pessoa quebrou a linha de indiferença
pelos nossos destinos, que os seus dois antecessores haviam criado, e restaurou
a obra de penetração ferroviária. V. Exa. vem examinar e impulsionar essa obra,
consoante o pensamento do chefe de Estado”.
O
Ministro chegou ao Roncador acompanhado de funcionários do Ministério da Viação
e da Companhia Mogiana, do Sr. Palhano de Jesus (inspetor geral das Estradas de
Ferro) e do Sr. Balduíno de Almeida (diretor da Estrada de Ferro Goiás). O
grupo transpôs o Paranaíba no dia 24 de agosto, visitou os diversos pontos da
ferrovia e chegou à Estação do Roncador por volta das 13:30 horas do mesmo dia.
Não compareceu nenhuma autoridade dos municípios por onde passou ou de Santa
Cruz, onde estava para pisar o solo naquele momento.
No
seu desembarque, onde era aguardado por operários e moradores (pessoas
simples), inicialmente predominou uma frieza por conta do que representava a tão
alta autoridade ou mesmo a indiferença sobre a importância histórica da visita.
Quando saltaram, pela falta de quem recebê-los, trataram imediatamente de
visitar as obras da ponte e da expansão dos trilhos.
Perante
o sentimento de nulidade, Moisés Santana e os sete cidadãos de Campo Formoso
decidiram abordar o ministro, conforme relata:
“Animei-me. Cerquei-o, fazendo com que, por
gentileza parasse. Atendeu-me. Foi gentil. Dirigi-lhe a palavra, sob o Sol
causticante. Procurei fazer vibrar toda a sensibilidade em prol de minha terra
e vi, com indizível prazer, que as minhas palavras afeiçoavam os semblantes.
Depois, vi atenção carinhosa, entusiasmo expansivo e afinal solidariedade
patriótica e irmã.
Quando o senhor ministro me apertou a
mão com ambas as mãos, pareceu-me que todos os meus patrícios, que nos
cercavam, estavam consolados: Goiás reivindicava.
A resposta do Sr. ministro foi um hino
de unção patriótica, foi uma página de amor do benemérito governo Epitácio por
todas as terras do Brasil, em um preito de justiça aos direitos de Goiás.”.
O
ministro analisou minuciosamente o projeto e emitiu resolução pela celeridade
da construção da ponte sobre o Corumbá e o rápido avanço por 100 quilômetros de
trilhos, prometendo não faltar do governo federal, recursos financeiros e
disposição para cumprir as metas. Deu carta branca e ilimitados poderes para
que Balduíno de Almeida agisse nesse sentido. Ainda assim, deputados
oposicionistas, preocupados apenas em manter seus acordos e interesses
pessoais, sem se preocuparem com interesses maiores do Estado, foram
posteriormente à bancada do parlamento criticar a presença do ministro Pires do
Rio.
O
discurso do ministro motivou e emocionou os presentes. Conforme relado de
Moisés Santana, um fato prosaico marcou aquela visita: após a promessa de
Balduíno de Almeida de cumprir o que o ministro pedia, “confessou-o o orador de Campo Formoso que – tal foi o seu júbilo, ante
as palavras do Ministro, que, ao ser por ele abraçado, tamanha era a sua emoção
que quase desmaiou em seus braços...”. Coisas da nossa política.
E
a obra, que atrasou perante o cronograma apresentado pelo ministro, seguiu
lentamente rumo a Anápolis. Em 1922 concluiu-se a construção da ponte. Em 1923,
os trilhos chegaram a Ubatã e em 1928, foi inaugurada a estação daquela
localidade. A rede ferroviária chegou ao seu ponto final em Anápolis em 1935.
Depois de décadas estacionada em Anápolis, recentemente foi dado segmento ao
projeto da Ferrovia Norte-Sul, nunca concluído pelos mesmos problemas crônicos
de gestão e desonestidade que tanto adiaram a chegada da rede ferroviária em
Goiás no início do século passado (o projeto inicial da Ferrovia Norte-Sul data
do ano de 1884).
A
chegada da ferrovia causou um impulso econômico nos municípios da região,
especialmente entre as décadas de 1920 e 1940, impulso este freado com a
construção da nova Capital e a chegada dos trilhos ao Mato Grosso Goiano. Em
Campo Formoso, os anos de 1920 foram marcados por avanços tecnológicos
importantes, como a implantação da energia elétrica por Pio José da Silva em
1924. O mesmo Pio havia em 1920, desbravado e construído a estrada entre o
Roncador e Anápolis. Coube também ao mesmo implantar uma linha de transporte
coletivo entre essas localidades. Depois, com a chegada da ferrovia a Ubatã,
foi aberta uma nova estrada entre a sede do município e o novo povoamento.
A
estrada de ferro também trouxe um grande avanço nos serviços de comunicação: a
chegada da rede do telégrafo, facilitando e agilizando as comunicações com a
sede do Estado. Futuramente, trataremos em novo texto do impacto econômico
provocado em Campo Formoso por conta da chegada dos trilhos.
ANSELMO PEREIRA DE LIMA
(E-mail: anselmopereiradelima@gmail.com)
Referências Bibiográficas:
1.
RODRIGUEZ, Hélio Suêvo. A Importância da Estrada de Ferro para o Estado de
Goiás – Dossiê Ferrovias. In: Revista UFG / Dezembro 2011 / Ano XIII
nº 11. p.69-74.
2.
SANTANA, Moisés Augusto. A Estrada de Ferro Goiás. In: BORGES, Humberto Crispim.
Moisés Santana: Vida e Obra. Goiânia:
Cerne, 1980. 330 p.
3.
Sobre os textos citados e sobre a biografia de Moisés Santana, ver a excelente obra
de Humberto Crispim (BORGES, Humberto Crispim. Moisés Santana: Vida e Obra.
Goiânia: Cerne, 1980. 330 p).
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