Em 31 de janeiro de 1913, quando o
padre espanhol Julião Calzada, vigário de
Santa Cruz e encarregado na recém-criada Paróquia de Nossa Senhora da Piedade
de Campo Formoso, chegou de mais uma visita pastoral, foi surpreendido com uma
carta remetida pelo vigário de Santa Luzia, Pe. Domingos Moraes de Sarmento. A
correspondência o proibia de ministrar os sacramentos e de fazer o trabalho
pastoral na região entre os rios Corumbá e Piracanjuba.
Padre
Julião, que era segundo relatos, muito “afiado” nas palavras e conhecia bem a
questão do conflito, anotou no livro de Tombo da Paróquia que nos anos de 1911[1] e
1912 suscitou-se uma questão no Congresso Estadual por parte do povo de S.
Luzia, dizendo que o dito terreno entre os dois rios pertencia a S. Luzia,
alegando como prova uma lei antiga que existia no arquivo estadual. Como
comenta o Pe. Julião, existia essa lei do tempo da Monarquia. Contudo, entre a
lei citada e a que saiu publicada havia segundo ele uma grande diferença e que
o teor desta lei seria um erro de interpretação, confundindo-se com o nome dos
Rios Piracanjuba e Corumbá.
Narra
Pe. Calzada que no longo espaço de vinte e tantos ou trinta anos o dito lugar
foi sempre governado pela autoridade civil e eclesiástica de S. Cruz, a cuja
Freguesia pertencia Campo Formoso até 1912 quando foi criada a nova Freguesia[2] pelo
bispo de Goiás, D. Prudêncio Gomes da Silva.
O
Pe. Domingos valendo-se desta questão de municípios de S. Luzia e Campo
Formoso, ou mesmo para coadjuvar o município que era vigário, quis-se levantar
uma questão de limites de freguesias e por isso escreveu-lhe uma carta o
proibindo de administrar Sacramentos naquele pedaço de chão.
A
partir da provocação do vigário vizinho, que também em outras ocasiões atuou na
paróquia de Campo Formoso, padre Julião o remeteu uma carta em resposta[3]:
“Santa Cruz, 28 de Fevereiro do ano
1913.
Revmo. P. Domingos Moraes
Sarmento
Laudentur
Jesus Christus Santa Luzia In eternum!
Ao chegar de giro que estava fazendo
recebi a vossa carta de 31 do próximo passado. – Se bem que nada tenho que ver
com os limites de Santa Luzia e Campo Formoso, não posso todavia ser da mesma opinião
do colega. No decreto que cria a Freguesia de Campo Formoso demarca os limites
desta, pelos atuais limites do Município [grifado pelo autor].
Ora, naquela quadra estava pendente no Congresso a questão de Limites entre
Campo Formoso e S. Luzia, não tendo saído ainda a favor de S. Luzia. – Sendo
primeiro o decreto do Bispado que criara a Freguesia com os atuais limites do Município,
que o decreto do governo julgando a questão a favor de S. Luzia, dito esta que
a intenção da autoridade Eclesiástica, era fazer os limites que as freguesias
de Campo Formoso de boa fé, possuíam nessa quadra itens mais atendendo que até
essa quadra, ou data, todos os vigários o mesmo que as autoridades civis
exerceram suas respectivas funções sem nenhum protesto das autoridades civis e
eclesiásticas de S. Luzia, é mais que prova suficiente para considerar a parte
contestada como pertencente a Campo Formoso.
O P. Gomes, eu mesmo, não só o ano
passado, como o amigo diz, foi todos os anos, tenho ido fazer o giro, e nunca o
colega diz nada, nem eu pedi licença por considerar aquele pedaço pertencente a
minha jurisdição. Outrossim, o amigo no tempo que eu moro aqui nunca veio fazer
o giro no lugar constatado; todas as funções, todos os atos, civis e religiosos
daqueles fregueses no longo espaço de seis anos, foram feitos na Capela, hoje
Matriz de Nossa Senhora da Piedade de Campo Formoso. Naturalmente eu não posso
supor que se os fregueses em questão pertencessem a nossa Freguesia, ficaria o
colega tanto tempo sem visitá-los. Sinto não poder concordar com vossa opinião.
Primeiro, porque o considero como meu amigo; segundo porque sou estrangeiro e o
povo de S. Luzia dirá que não tenho a opor a seus desejos; terceiro: porque não
é da minha natureza teimar. Mesmo assim não posso concordar com a vossa
opinião.
Desejo que o amigo me faça justiça
neste ponto.
Não é por ambição nem por interesse que
procedo assim pois se o amigo quiser passear por aqueles moradores, tem a minha
licença para administrar os sacramentos tanto naquele lugar, como na Freguesia
toda. Não sendo desse modo, não posso concordar com V. pessoa. Então só
autoridade decidindo para bem de nós todos, e principalmente dos fregueses
contestados. Oremos providências.
De seu amigo e colega,
P.
Julião Calzada”.
De
fato, conforme levantado pelo jornal O
Planalto na época, tanto o vigário de Santa Luzia quanto o de Santa Cruz
ministravam sacramentos na região do conflito de jurisdição, inclusive em
épocas próximas, de forma bastante harmônica e colaborativa, de forma a
garantir que o trabalho pastoral da igreja católica acontecesse e assistisse os
fiéis. Citaremos abaixo dois casos de assentamentos de batismos[4] que
ocorreram com a presença de pastores das duas freguesias nos anos de 1861 e
1862:
“Aos
21 de junho de 1861 no sítio do Piracanjuba desta freguesia de Santa Luzia, o
reverendíssimo Simeão Estellyta Lopes, com licença minha, batizou solenemente e
pôs os Santos Óleos no inocente Jeronymo, nascido a 06 de março p. filho
legítimo de Joaquim Moreira e Maria Alves – Padrinhos: Luiz Alves e Anna
Moreira e para constar, etc. – O vigário, Delfino Machado de Faria”.
“Aos
25 de julho de 1862 no sítio do Burity desta freguesia de Santa Luzia, o
reverendíssimo vigário de Santa Cruz, Antonio L. Braz Prego, com licença minha,
batizou solenemente e pôs os Santos Óleos à inocente Rosa, filha legítima de
Joaquim Manoel da Costa e Joaquina Moreira Saavedra – Não declararam padrinhos.
Para constar, etc. – O vigário, Delfino Machado de Faria”.
Em contraposição ao pensamento do Padre
Julião Calzada, Herculano Meirelles havia defendido anteriormente em seu
discurso no Senado Estadual, que a área faria parte da freguesia de Santa Luzia
[ver texto anterior] e segundo ele, para que alguém viesse de fora, teria que
ter a autorização do Vigário daquela paróquia. O certo é que por conta do ambiente de tensão no primeiro semestre
de 1913, talvez nenhum pedido formal fosse o suficiente.
Naquela ocasião, provavelmente os
agentes políticos dos dois municípios, cristãos influentes, agiam para fazer
com que um problema estritamente político e econômico fosse levado ao espaço da
Igreja e tumultuasse ainda mais a situação.
Sobre
este assunto, dos limites de freguesia entre Campo Formoso e S. Luzia, padre
Julião escreveu ao vigário foranco Pe. Gomes Pereira da Silva, o qual por sua
parte remeteu a carta-ofício ao bispo de Goiás, D. Prudêncio Gomes da Silva,
para que tomasse providências a respeito. O Procurador de Fábrica da Paróquia
de Nossa Senhora da Piedade, Cel. José da Costa, por sua vez, também remeteu
cópia da carta resposta enviada ao Vigário de S. Luzia para que o bispo
conhecesse o seu teor.
Como o Congresso Estadual tardava em
deliberar a respeito do assunto, havia uma pressão de ambas as municipalidades.
Com a edição da Lei Estadual n. 431, de 16 de julho de 1913, que tratava desta
matéria, a questão mesmo não tendo uma solução política definitiva, teve um
encaminhamento que dava base formal e jurídica, acalmando um pouco os ânimos.
CONTINUA...
ANSELMO PEREIRA DE LIMA
(E-mail: anselmopereiradelima@gmail.com)
1.
Ver: Paróquia Nossa Senhora da Piedade de Campo Formoso. Livro de Tombo n. I,
Folhas 3, 3-v, 4 e 4v.
2.
Através de Decreto, o bispo de Goiás, D. Prudêncio Gomes da Silva criou em 1º
de julho de 1912 a Paróquia Nossa Senhora da Piedade de Campo Formoso. A mesma
foi instalada em 31 de agosto daquele ano.
3.
Ver: Paróquia Nossa Senhora da Piedade de Campo Formoso. Livro de Tombo n. I,
Folhas 3, 3-v, 4 e 4v.
4.
Ver: O Planalto. Ano I. n. 07, p. 04, de 17/09/1910.
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