terça-feira, 2 de abril de 2019

Conflitos de Jurisdição entre Campo Formoso e Santa Luzia - PARTE V


Em 31 de janeiro de 1913, quando o padre espanhol Julião Calzada, vigário de Santa Cruz e encarregado na recém-criada Paróquia de Nossa Senhora da Piedade de Campo Formoso, chegou de mais uma visita pastoral, foi surpreendido com uma carta remetida pelo vigário de Santa Luzia, Pe. Domingos Moraes de Sarmento. A correspondência o proibia de ministrar os sacramentos e de fazer o trabalho pastoral na região entre os rios Corumbá e Piracanjuba.
Padre Julião, que era segundo relatos, muito “afiado” nas palavras e conhecia bem a questão do conflito, anotou no livro de Tombo da Paróquia que nos anos de 1911[1] e 1912 suscitou-se uma questão no Congresso Estadual por parte do povo de S. Luzia, dizendo que o dito terreno entre os dois rios pertencia a S. Luzia, alegando como prova uma lei antiga que existia no arquivo estadual. Como comenta o Pe. Julião, existia essa lei do tempo da Monarquia. Contudo, entre a lei citada e a que saiu publicada havia segundo ele uma grande diferença e que o teor desta lei seria um erro de interpretação, confundindo-se com o nome dos Rios Piracanjuba e Corumbá.
Narra Pe. Calzada que no longo espaço de vinte e tantos ou trinta anos o dito lugar foi sempre governado pela autoridade civil e eclesiástica de S. Cruz, a cuja Freguesia pertencia Campo Formoso até 1912 quando foi criada a nova Freguesia[2] pelo bispo de Goiás, D. Prudêncio Gomes da Silva.
O Pe. Domingos valendo-se desta questão de municípios de S. Luzia e Campo Formoso, ou mesmo para coadjuvar o município que era vigário, quis-se levantar uma questão de limites de freguesias e por isso escreveu-lhe uma carta o proibindo de administrar Sacramentos naquele pedaço de chão.
A partir da provocação do vigário vizinho, que também em outras ocasiões atuou na paróquia de Campo Formoso, padre Julião o remeteu uma carta em resposta[3]:

“Santa Cruz, 28 de Fevereiro do ano 1913.

 Revmo. P. Domingos Moraes Sarmento
Laudentur Jesus Christus Santa Luzia In eternum!

Ao chegar de giro que estava fazendo recebi a vossa carta de 31 do próximo passado. – Se bem que nada tenho que ver com os limites de Santa Luzia e Campo Formoso, não posso todavia ser da mesma opinião do colega. No decreto que cria a Freguesia de Campo Formoso demarca os limites desta, pelos atuais limites do Município [grifado pelo autor]. Ora, naquela quadra estava pendente no Congresso a questão de Limites entre Campo Formoso e S. Luzia, não tendo saído ainda a favor de S. Luzia. – Sendo primeiro o decreto do Bispado que criara a Freguesia com os atuais limites do Município, que o decreto do governo julgando a questão a favor de S. Luzia, dito esta que a intenção da autoridade Eclesiástica, era fazer os limites que as freguesias de Campo Formoso de boa fé, possuíam nessa quadra itens mais atendendo que até essa quadra, ou data, todos os vigários o mesmo que as autoridades civis exerceram suas respectivas funções sem nenhum protesto das autoridades civis e eclesiásticas de S. Luzia, é mais que prova suficiente para considerar a parte contestada como pertencente a Campo Formoso.
O P. Gomes, eu mesmo, não só o ano passado, como o amigo diz, foi todos os anos, tenho ido fazer o giro, e nunca o colega diz nada, nem eu pedi licença por considerar aquele pedaço pertencente a minha jurisdição. Outrossim, o amigo no tempo que eu moro aqui nunca veio fazer o giro no lugar constatado; todas as funções, todos os atos, civis e religiosos daqueles fregueses no longo espaço de seis anos, foram feitos na Capela, hoje Matriz de Nossa Senhora da Piedade de Campo Formoso. Naturalmente eu não posso supor que se os fregueses em questão pertencessem a nossa Freguesia, ficaria o colega tanto tempo sem visitá-los. Sinto não poder concordar com vossa opinião. Primeiro, porque o considero como meu amigo; segundo porque sou estrangeiro e o povo de S. Luzia dirá que não tenho a opor a seus desejos; terceiro: porque não é da minha natureza teimar. Mesmo assim não posso concordar com a vossa opinião.
Desejo que o amigo me faça justiça neste ponto.
Não é por ambição nem por interesse que procedo assim pois se o amigo quiser passear por aqueles moradores, tem a minha licença para administrar os sacramentos tanto naquele lugar, como na Freguesia toda. Não sendo desse modo, não posso concordar com V. pessoa. Então só autoridade decidindo para bem de nós todos, e principalmente dos fregueses contestados. Oremos providências.
De seu amigo e colega,
P. Julião Calzada”.

De fato, conforme levantado pelo jornal O Planalto na época, tanto o vigário de Santa Luzia quanto o de Santa Cruz ministravam sacramentos na região do conflito de jurisdição, inclusive em épocas próximas, de forma bastante harmônica e colaborativa, de forma a garantir que o trabalho pastoral da igreja católica acontecesse e assistisse os fiéis. Citaremos abaixo dois casos de assentamentos de batismos[4] que ocorreram com a presença de pastores das duas freguesias nos anos de 1861 e 1862:
“Aos 21 de junho de 1861 no sítio do Piracanjuba desta freguesia de Santa Luzia, o reverendíssimo Simeão Estellyta Lopes, com licença minha, batizou solenemente e pôs os Santos Óleos no inocente Jeronymo, nascido a 06 de março p. filho legítimo de Joaquim Moreira e Maria Alves – Padrinhos: Luiz Alves e Anna Moreira e para constar, etc. – O vigário, Delfino Machado de Faria”.
“Aos 25 de julho de 1862 no sítio do Burity desta freguesia de Santa Luzia, o reverendíssimo vigário de Santa Cruz, Antonio L. Braz Prego, com licença minha, batizou solenemente e pôs os Santos Óleos à inocente Rosa, filha legítima de Joaquim Manoel da Costa e Joaquina Moreira Saavedra – Não declararam padrinhos. Para constar, etc. – O vigário, Delfino Machado de Faria”.
Em contraposição ao pensamento do Padre Julião Calzada, Herculano Meirelles havia defendido anteriormente em seu discurso no Senado Estadual, que a área faria parte da freguesia de Santa Luzia [ver texto anterior] e segundo ele, para que alguém viesse de fora, teria que ter a autorização do Vigário daquela paróquia. O certo é que por conta do ambiente de tensão no primeiro semestre de 1913, talvez nenhum pedido formal fosse o suficiente.
Naquela ocasião, provavelmente os agentes políticos dos dois municípios, cristãos influentes, agiam para fazer com que um problema estritamente político e econômico fosse levado ao espaço da Igreja e tumultuasse ainda mais a situação.
Sobre este assunto, dos limites de freguesia entre Campo Formoso e S. Luzia, padre Julião escreveu ao vigário foranco Pe. Gomes Pereira da Silva, o qual por sua parte remeteu a carta-ofício ao bispo de Goiás, D. Prudêncio Gomes da Silva, para que tomasse providências a respeito. O Procurador de Fábrica da Paróquia de Nossa Senhora da Piedade, Cel. José da Costa, por sua vez, também remeteu cópia da carta resposta enviada ao Vigário de S. Luzia para que o bispo conhecesse o seu teor.
Como o Congresso Estadual tardava em deliberar a respeito do assunto, havia uma pressão de ambas as municipalidades. Com a edição da Lei Estadual n. 431, de 16 de julho de 1913, que tratava desta matéria, a questão mesmo não tendo uma solução política definitiva, teve um encaminhamento que dava base formal e jurídica, acalmando um pouco os ânimos.

CONTINUA...
  
ANSELMO PEREIRA DE LIMA
(E-mail: anselmopereiradelima@gmail.com) 

Notas e Fontes Documentais:

1. Ver: Paróquia Nossa Senhora da Piedade de Campo Formoso. Livro de Tombo n. I, Folhas 3, 3-v, 4 e 4v.
2. Através de Decreto, o bispo de Goiás, D. Prudêncio Gomes da Silva criou em 1º de julho de 1912 a Paróquia Nossa Senhora da Piedade de Campo Formoso. A mesma foi instalada em 31 de agosto daquele ano.
3. Ver: Paróquia Nossa Senhora da Piedade de Campo Formoso. Livro de Tombo n. I, Folhas 3, 3-v, 4 e 4v.
4. Ver: O Planalto. Ano I. n. 07, p. 04, de 17/09/1910.

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