quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Conflitos de Jurisdição entre Campo Formoso e Santa Luzia - PARTE I

O texto apresentado pelas leis estaduais n. 277, de 12 de julho de 1906, e n. 347, de 08 de julho de 1909, em muito resolveu os anseios dos moradores de Campo Formoso (Orizona), mas trouxe efeitos colaterais que se arrastaram pelo menos pela década seguinte. É que essas leis apresentavam em sua redação brechas importantes e não tratavam sobre as novas divisões territoriais com os vizinhos Bomfim (Silvânia) e Santa Luzia (Luziânia). A lei n. 277, que elevou Campo Formoso à Vila, define em seu Artigo 1º que “fica elevado à categoria de Vila o arraial de Campo Formoso, da Comarca de Bomfim, constituindo o respectivo distrito um município com a mesma denominação e sede”.
Sobre a divisão territorial, a lei (Artigo 2º) diz que:
O novo município limitar-se-a: com os municípios de Santa Luzia e Bomfim com as mesmas divisas anteriores e até hoje respeitadas; partirá a divisa da do município de S. Cruz, no Rio do Peixe e por este até a barra do ribeirão do Baú, por este acima até a fazenda de Benedito Gonçalves de Araújo, abrangendo-a, e dali seguindo em linha reta ao morro da Onça, dali seguindo as divisas da fazenda do Antonio Rodrigues, abrangendo-o até o ribeirão do Corrente, e por este abaixo até a sua barra no Rio Corumbá[1].
A lei n. 347 elevou Campo Formoso à cidade e reafirmou as divisões previstas na lei n. 277[2]. Neste intervalo, a lei n. 303, de 20 de julho de 1907, alterava os limites territoriais entre Campo Formoso e Santa Luzia. No artigo 1º dizia o texto [3]:
“... a partir da ponte do Rio do Peixe, na estrada de Bomfim e dirige a Santa Cruz, em linha reta a mais alta cabeceira do ribeirão Bananal, denominado também Bauzinho e Baú Brande, e por este abaixo, até o rio Corumbá...”.
Este texto foi alterado em 1909 com a lei n.347. Portanto, preocupou-se em resolver em todas as ocasiões as divisas com o antigo município patrício, esquecendo-se de deliberar sobre as divisas a norte e leste com os demais vizinhos. A Resolução n. 570, de 09 de agosto de 1876, por exemplo, definiu que a partir das fazendas Firmeza e Campo Aberto, o território ao norte pertenceria a Bomfim[4].
A divisão com Santa Luzia estava historicamente definida como sendo o rio Piracanjuba. O avanço de Campo Formoso sobre o triângulo entre o rio Piracanjuba e sua foz com o Corumbá foi o motivador dos conflitos, ocorridos a partir de 1910, quando aconteceram embates jurídicos, políticos e jornalísticos intensos.
Acontece que os colonizadores mineiros que ocuparam geograficamente a região tinham profundas relações familiares, históricas e identitárias com seus vizinhos do lado de Santa Cruz, que veio a formar Campo Formoso. Geralmente também tinham terras em ambos os lados do Piracanjuba. Pela proximidade geográfica com Santa Cruz, que era também caminho para a freguesia de Araxá, origem da maioria das famílias mineiras, ficava muito mais cômodo se relacionar social, econômica e politicamente com este município.
Segundo o historiador e escritor Paulo César Sampaio de Oliveira, desde o início do século XIX, havia incentivos para que fazendeiros do Sudeste ocupassem a região e obtivessem títulos de sesmarias. No Rio de Janeiro, as famílias mais influentes de Minas Gerais e São Paulo conseguiam esses títulos facilmente. Já as famílias mais modestas tinham que se esforçar um pouco mais para conseguir o benefício pela marcha ao oeste e norte.
Provavelmente, foi na década de 1830 que a família de Jacintho Pereira Cardoso, pai do Cap. José Pereira Cardoso, obteve os títulos das terras no Rio de Janeiro e começou a migrar lentamente para o sertão de Santa Cruz. Nota-se que não vieram de imediato. Foi um processo que durou cerca de duas décadas e de forma gradativa. Nesse ínterim, também continuaram mantendo suas vidas na região da Serra Negra, em Patrocínio-MG. O mesmo aconteceu com a família de Joaquim Fernandes de Castro e com os vizinhos que aqui se estabeleceram.
No final da década de 1840 e início dos anos de 1850, as terras começaram a ser subdivididas com os parentes que vieram, geralmente em definitivo. A viagem de Patrocínio a Santa Cruz, apesar das condições precárias de tráfego, variavam de uma a três semanas, demorando mais quando se levavam grupos grandes, compostos por mulheres, crianças, bens e mantimentos.
De acordo com importante estudo feito por diversas mãos e publicado no blog Historiografia para Catalão[5], ao citar Heraldo Tadeu Laranjo Mendonça, observa que: "O caminho de Goiás partia, a princípio, e pelo lado paulista, da trilha aberta pelos bandeirantes vindos de Taubaté. Mais tarde, e por outro lado, foi aberto o Caminho Novo, iniciado no Rio de Janeiro, atingindo Juiz de Fora até Tiradentes, São João del Rey e Barbacena. Rumando para noroeste tinha, aproximadamente o seguinte trajeto: São Tiago, Morro do Ferro, Oliveira, Formiga, Bambuí, Araxá e, finalmente Paracatu, onde os caminhos se uniam e, seguiam para Goiás". O Caminho Novo passava por Serra Negra, onde em seu itinerário em 1823, o Brigadeiro Raymundo José da Cunha Mattos[6] registra a estadia na região da Capela de Nossa Senhora da Piedade.
De acordo ainda com o blog, ao citar José Aluisio Botelho: "...A compreensão de tudo isso, passa pelas características migratórias internas na capitania de Minas Gerais no final do século dezoito e início do dezenove, decorrentes do esgotamento da mineração. O grande fluxo migratório para o sertão da Farinha Podre se deu por volta de 1810 em diante com as descobertas de pastagens propícias à criação de gado, e de terras férteis favoráveis à agricultura. Decorrente isso se tem as rotas percorridas por levas de famílias inteiras em direção ao triângulo mineiro e alto Paranaíba”. Com essa demanda e os incentivos, as famílias adentraram o sertão de Santa Cruz, especialmente na Capitania de Goiás.
Sobre a ocupação da parte de Santa Luzia, o genealogista Enio Alves Vieira[7] destaca que “a Fazenda Mandaguahy foi o chão habitado pelo mineiro de São Francisco de Paula-MG, Antonio Vieira da Motta, por volta de 1843. Ali criou sua família, mesclou os sobrenomes Vieira da Motta e Pereira Caixeta”.
O autor acrescenta que os primeiros habitantes da região ocuparam as fazendas Posse (dos Buritis), Japão, Gamelas e Piracanjuba, bem como pelos ribeirões Brejão, Buriti Grande e rio Corumbá, além do próprio Mandaguahy, nascido no platô das Covas, recebendo os córregos Açude do Joaquim, Barreirinho, Grota do Fecho e Restinga Funda. Os habitantes da região se dedicavam à criação de gado de cria e cultura de cereais para subsistência.
Na margem direita do rio Piracanjuba, na região do Marinheiro, o pioneirismo ficou por conta de Florentino Vieira da Motta/ do Nascimento, filho de Manoel Vieira da Motta e Thereza Maria do Espírito Santo. Da mesma família de Antonio, Florentino nasceu na região da Serra Negra, freguesia de Patrocínio. Estabeleceu-se na região em definitivo por volta de 1847. Era casado com Maria Joanna de Jesus, filha de Manoel Pereira Cardoso e Justa Zeferina.
A vinda desses parentes abriu caminho para um significativo processo migratório oriundo da região da Serra Negra nas décadas de 1840 e 1850, especialmente. Na mesma época que vieram os Pereira Cardoso, Vieira da Motta e Fernandes de Castro [8], chegaram outras famílias, constadas no Censo Mineiro de 1832 e que se estabeleceram na região, como Francisco, Antonio e Vicente José d’Oliveira, Clemente José da Silva, Antonio Vieira Maxado, Manoel Joaquim Bastos, João Capistrano, Joaquim e Manoel José Pinheiro, só para citar alguns indivíduos[9]. Somados com outras famílias já estabelecidas, como os Barbosa, Mello, Correa Peres/ Pires, Sousa Lobo, Ribeiro da Silva, Cabral, Costa, Vaz dos Reis, Ferreira da Cunha, Gonçalves de Araújo e Martins Borges, formou-se um importante quadro social na região, que permitiu o seu rápido povoamento.
Na próxima parte deste texto trataremos especificamente sobre as questões jurisdicionais e políticas relacionadas aos limites territoriais entre Santa Luzia e Campo Formoso.

CONTINUA...

ANSELMO PEREIRA DE LIMA
(E-mail: anselmopereiradelima@gmail.com) 


Referências, Fontes Documentais e Notas:

1. Ver: Semanário Official – Ano IX, No. 349, pag. 01, de 09/08/1906.
2. Ver: Semanário Official. Ano XII, n. 469, pag. 01, de 16/07/1909.
3. Ver: Semanário Official. Ano X, n. 393, pag. 03, de 03/08/1907.
4. Ver: Correio Official de Goyaz. Ano XXXIX. N. 70, pág. 01, 13/09/1876.
5. Ver: Historiografia para Catalão. 1ª parte: Registros paroquiais de terras da Villa do Cathalam. In: https://historiografiaparacatalao.blogspot.com/2017/08/registros-paroquiais-de-terras-villa-do.html. Consultado em 29/11/2018.
6. MATTOS, Raymundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás – Tomo I. Rio de Janeiro: J. Villeneuve, 1836.
7. VIEIRA, Enio Alves. Os Vieira da Fazenda Mandaguahy. Goiânia: Kelps, 2015. 354 p.
8. Segundo Enio, os Vieira da Motta são originários de São Francisco de Paula-MG, os Silva Vieira de Dores de Indaiá-MG, e os Pereira Caixeta, de Santo Antonio do Monte-MG. Conforme observamos, os Fernandes de Castro são originários da região de Formiga e Conselheiro Lafaete-MG. Os Pereira Cardoso provavelmente são oriundos de São Bento do Tamanduá, hoje Itapecerica-MG.
9. O senhor Jeová Vieira, bisneto de José Pereira Cardoso, está preparando importante estudo sobre a presença da família Vieira da Motta e Pereira Cardoso em Orizona.


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